Do golpe contra Chávez à Assembleia Constituinte de Maduro, país vive processo político conturbado
Os opositores do chavismo denunciam que vivem uma ditadura na Venezuela, enquanto o presidente Nicolás Maduro diz que o país tem uma democracia participativa, e acusa os opositores de tentarem dar um golpe de Estado, como o que ocorreu em 2002 contra seu antecessor, Hugo Chávez.
A recente eleição para formar uma nova Assembleia Constituinte com um sistema definido pelo próprio Maduro, sem consulta popular prévia e boicotada pela oposição, foi o último de uma série de fatos que abalaram, segundo especialistas ouvidos pelo ‘G1′, a democracia venezuelana.
Veja os principais desses acontecimentos:
– o golpe de 2002 contra Chávez;
– a perda de independência dos Poderes;
– a repressão às manifestações oposicionistas;
– a Constituinte convocada por Maduro;
Entenda abaixo como cada um se desenrolou:
Golpe de Estado de 2002
No dia 11 de abril de 2002, um golpe de Estado tirou o presidente Hugo Chávez do poder e o empresário Pedro Carmona se proclamou presidente, decretando a dissolução de todos os poderes públicos. O golpe, que foi uma ruptura por parte da oposição, durou quase 48 horas, e Chávez foi restituído ao cargo por militares leais.
Após o seu retorno, Chávez passou a endurecer seu discurso e sua defesa do socialismo bolivariano. Em 2007, o Parlamento, de maioria chavista, aprovou uma reforma da Constituição que o próprio presidente havia promulgado após a convocação de uma Assembleia Constituinte, em 1999, o ano em que assumiu a presidência. A reforma ampliou seus poderes como presidente.
As principais mudanças aprovadas incluíam a reeleição indefinida, o aumento de seus poderes para decidir promoções militares e a política monetária junto ao Banco Central e a suspensão dos direitos a um julgamento justo durante o estado de exceção. Na época, a oposição considerou a reforma um golpe de Estado.
Para o professor Alberto Pfeifer, do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint) da USP, a reação de Chávez após o golpe é o ponto de inflexão em que seu endurecimento se acelera.
“É no retorno de Chávez ao poder que ele começa a endurecer, separa quem é situação de quem é da oposição, polariza o discurso e começa a abradar a Constituição no sentido da promoção do ideal do socialismo do século XXI”, diz Pfeifer.
Chávez foi criticado pela oposição por algumas de suas marcas de governo, como estatização da economia, programas sociais e controle de empresas e órgãos do governo. Mas o presidente tinha o apoio da maioria chavista no Parlamento e da população, que depois de sua eleição aprovou três reeleições e sua permanência no poder questionada em um referendo revogatório.
Independência dos poderes
Em seu governo, Chávez ainda aprovou uma lei que aumentava o número de juízes na Suprema Corte do país e pela qual foi acusado de controlar o órgão para alinhá-lo com o governo.
O controle do governo sobre os juízes federais continuou sendo denunciado no governo de Nicolás Maduro e se tornou mais evidente a partir de dezembro de 2015, quando pela primeira vez o Parlamento foi formado por uma maioria de deputados opositores ao chavismo. Desde então, as decisões significativas aprovadas pelo Legislativo foram declaradas inconstitucionais pelo Supremo, que considera que o Parlamento atua em desacato por ter juramentado três deputados opositores cuja eleição foi suspensa por suposta fraude eleitoral.
Em março deste ano, o tribunal decidiu assumir as funções do Parlamento, pelo mesmo motivo. Após acusações de golpe de Estado e de instalação de uma ditadura, o tribunal voltou atrás em sua decisão.
A falta de independência entre Executivo, Legislativo e Judiciário é um dos sinais de que a democracia é violada, segundo os especialistas.
“Para classificar como democracia, como já falaram alguns autores, não basta ter eleições. Precisa ter um ambiente competitivo e aberto o suficiente para que tenha troca de governo”, diz Ricardo Sennes, sócio-diretor da consultoria Prospectiva.
“Tem que ter uma separação dos poderes e o respeito a cada um na sua área de atribuição. Já havia problemas antes, e o Maduro aprofunda. O poder Judiciário, em particular, está totalmente sob controle do Executivo”, acrescenta.
Além do Judiciário, o governo tem o controle de órgãos e empresas estatais como o Banco Central, a petroleira estatal PDVSA, e o Conselho Nacional Eleitoral (CNE). “Todos os aparelhos estatais estavam basicamente trabalhando para o presidente, longe de qualquer função de funcionamento republicano. Isso foge do jogo democrático”, diz Sennes.
O adiamento de eleições por parte do CNE também é apontado pelos especialistas como uma quebra do processo democrático. As eleições para governadores no país, que deveriam ocorrer em dezembro de 2016, foram adiadas duas vezes. O órgão também suspendeu o processo do referendo revogatório contra Maduro que a oposição levava a cabo, justificando sua decisão no acatamento de decisões de tribunais penais de vários estados, que anularam por fraude uma primeira coleta de assinaturas.
Repressão a manifestantes
Outro ponto criticado pela oposição, a comunidade internacional e organizações de defesa dos direitos humanos é a repressão contra os manifestantes que saem às ruas para protestar contra o governo chavista.
Em 2014, explodiu uma onda de manifestações contra o governo motivada pela situação social e econômica – alto índice de inflação e escassez de produtos básicos, entre outros problemas. Ao reprimir os protestos, as forças de segurança entravam em confronto com os manifestantes, e deixaram um saldo de 43 mortos em 4 meses. Opositores políticos e prefeitos de algumas cidades foram presos sob a acusação de promover a violência durante os protestos ou de não agir para impedi-los.
Neste ano, desde abril uma nova onda de protestos voltou a provocar a repressão violenta, e os conflitos já deixaram mais de 120 mortos e 5 mil presos. Para Maduro, as manifestações opositoras culminaram em “atos terroristas” e de “insurgência armada” que buscam derrubá-lo. Em 2017, diferente de 2014, alguns dos civis detidos passaram a ser julgados em tribunais militares.
Segundo grupos de direitos humanos, o governo aplicou essa medida porque a procuradora-geral Luisa Ortega, que era próxima ao chavismo, mas passou a criticar o governo, denunciou prisões arbitrárias durante as manifestações opositoras e se negou a indiciar essas pessoas.
“O julgamento de civis em tribunais militares é uma prática das ditaduras dos anos 1970, no Brasil, na Argentina e no Chile. Ocorre sem nenhum tipo de processo. Há casos em que pessoas, por protestar, são detidas e acusadas por rebelião ou traição à pátria”, diz Tamara Taraciuk Broner, pesquisadora sênior da organização Humans Rights Watch (HRW) para as Américas.
É outro grande aspecto em que se vê o absoluto desrespeito aos direitos humanos e à democracia”, acrescenta.
A pesquisadora afirma que documentou casos de pessoas presas fora de manifestações, por serem críticos do governo, que foram levadas de suas casas por membros do Serviço de Inteligência. A ONU denunciou que muitos dos detidos foram vítimas de maus-tratos e tortura.
Assembleia Constituinte
Para a pesquisadora do HRW e o sócio-diretor da Prospectiva, o ponto de ruptura democrática mais crítico foi a Assembleia Constituinte convocada por Maduro. A oposição questionou o fato de o presidente não ter convocado um referendo para submetê-la à aprovação da sociedade e o modo como a eleição foi organizada. A votação foi dividia por representação territorial, independentemente do número de habitantes, e por setores sociais escolhidos por Maduro, o que teria favorecido a eleição de chavistas.
Após as eleições, a empresa Smartmatic, encarregada do processo de votação, denunciou que houve fraude em relação ao número de eleitores para a Constituinte e que o governo inflou o número de participantes em pelo menos um milhão.
No primeiro dia em que passou a funcionar, a Constituinte – que tem membros como Diosdado Cabello, número dois do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), Delcy Rodriguez, ex-chanceler, e a esposa e o filho de Maduro – aprovou a destituição da procuradora-geral Luisa Ortega, que vinha denunciando a repressão nas ruas, prisões arbitrárias e o processo da Constituinte.
Ortega havia sido suspensa do cargo pelo Supremo, acusada de cometer um grave erro de gestão. Ela foi acusada de mentir ao dizer que não deu seu aval à nomeação de juízes feita em 2015 pelo então Parlamento de maioria chavista.
“O que houve nessa convocação estranhíssima de Maduro de uma nova Constituinte é o desrespeito total a qualquer procedimento, sem aprovação no Parlamento, sem aprovação via consulta direta, sendo que estamos falando de uma Constituição feita há pouco tempo atrás já no regime chavista”, diz Sennes, para quem a destituição da procuradora “é difícil de qualificar”.
“Eles já passaram da linha do razoável onde daria para pensar alguma coisa dentro de um jogo institucional. É um vale-tudo onde as justificativas podem ser qualquer uma”, afirma.
A decisão foi uma amostra do poder que a Constituinte exerce, segundo Tamara. “O mais grave é que instauraram um superpoder que pode se desfazer dos poucos espaços e poderes democráticos que há na Venezuela”, afirma.
Fonte: G1